revista piauí, setembro de 2018
Numa manhã de junho, em Mbabane, a capital da última monarquia absolutista da África, o comerciante Buyasembe Mabuza fez alusão a uma célebre frase do romance italiano O Leopardo, talvez involuntariamente: “Algo precisa mudar para tudo continuar igual.” Referia-se à recente alteração de nome do reino onde sempre viveu. Como quase toda a população do país, Mabuza desconhecia as implicações da mudança – deveria trocar o documento de identidade, a carteira de motorista, a placa do carro? Aparentemente sim, mas àquela altura ainda não havia respostas claras.
Desde que foi coroado, em abril de 1986, logo depois de completar 18 anos, Mswati III – à época, um dos reis mais jovens do mundo – promoveu duas reformas significativas. Na primeira, em 2005, finalmente lançou uma nova Constituição. Por mais de três décadas, as decisões de governo eram tomadas sem qualquer base legal, de acordo com o desejo do monarca – o próprio Mswati III e, antes dele, Sobhuza ii. O pai do atual soberano reinou por sessenta anos e revogou a Carta Magna em 1973. Na ocasião, também aboliu os partidos políticos. A Constituição de 2005, porém, não trouxe grandes transformações. Limitou-se a reforçar o poder real e manteve proscritos os partidos.
A segunda reforma se deu em abril passado, quando o país conhecido até então como Suazilândia ganhou o nome de eSwatini. A mudança inaugurou os festejos do Duplo Jubileu de Ouro, que se encerram neste mês e marcam tanto o aniversário de 50 anos de Mswati III quanto o meio século de independência do reino, declarada num 6 de setembro.
A nova denominação não soou estranha para os quase 1,4 milhão de habitantes locais. Em suázi, uma das línguas oficiais da pequena nação (a outra é o inglês), a palavra eSwatini quer dizer terra dos suázis, povo dominante no reino. O excêntrico Mswati III justificou a decisão com laconismo: “O novo nome representará melhor a nossa gente.” Ele também frisou que, no exterior, havia quem confundisse Suazilândia e Suíça, já que, em inglês, o país africano se chamava Swaziland e o europeu é Switzerland. Na África contemporânea, a alteração chega um tanto atrasada. As nações da região que trocaram de nome, como Zimbábue, Maláui e Botsuana, o fizeram logo após o fim do ciclo colonial, entre as décadas de 50 e 70.
Desde que a Suazilândia se rebatizou, o monarca tem aparecido em público usando a tradicional roupa suázi com um “eSwatini” bem visível. Faixas comemorativas do Duplo Jubileu e anúncios publicitários – como os da KFC, rede norte-americana de fast-food – exibem a inscrição. Em junho, durante a Copa Cosafa, torneio futebolístico que reúne seleções da África Austral, os jogadores da sofrível equipe suázi ostentavam, nas costas, a nova denominação do reino. A emissora estatal tampouco fugiu à regra e virou eSwatini tv.
No entanto, ainda há muito para ser feito. A polícia real terá que modificar o uniforme de toda a corporação. Carimbos de imigração, passaportes e certidões de nascimento e de óbito também precisarão se atualizar, bem como os logotipos de empresas e instituições públicas que contenham o antigo nome do país.
O impacto financeiro das mudanças é incerto. Pelos cálculos de Zweli Martin Dlamini, editor do portal Swaziland News, só a troca de documentos pessoais custará 2 bilhões de rands – algo como 570 milhões de reais. O jornalista cuida do site a distância, na África do Sul. Ele precisou se exilar da terra natal após investigar casos de corrupção que envolviam a família de Mswati III.
Em recessão desde 2015, eSwatini amarga uma taxa de desemprego elevada até para os padrões africanos: 28%. Não bastasse, 63% de seus habitantes vivem abaixo da linha da pobreza. O país é líder mundial na prevalência de HIV – 27% da população contraiu o vírus da Aids –, e a expectativa de vida, para ambos os sexos, não supera os 60 anos.
“Assim seguem as coisas… Mesmo em plena crise, o rei gasta o dinheiro que quer, do jeito que quer. E agora teremos que arcar com os custos da mudança de nome – uma troca que Mswati III decidiu sem consultar ninguém”, reclamou Buyasembe Mabuza, o comerciante de Mbabane. Na contramão de boa parte dos conterrâneos, que evita criticar o soberano publicamente, ele soltou o verbo: “Aqui não se pode falar mal do rei nem no telefone. O governo vigia tudo. Mas você escreve para o Brasil, um país muito distante.”
Encravado entre Moçambique e a África do Sul, o reino de eSwatini conserva o mesmo sistema de poder que adotava no período colonial. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário subordinam-se a Mswati III, que escolhe o primeiro-ministro e, em última instância, toma todas as decisões. Abaixo dele, a figura mais influente é sua mãe, a rainha Ntombi Tfwala, ou a Grande Elefanta, líder espiritual da nação.
Em 1906, duas décadas após a Conferência de Berlim, que dividiu a África entre as potências europeias, o reino se tornou de vez um protetorado do Império Britânico – o que, na prática, não representou uma ameaça para a realeza local. “Depois da independência, por comodidade, preservou-se o modelo inglês de governança”, contou o professor Mphandlana Shongwe, um dos fundadores do Pudemo, grupo proscrito que luta pela democratização do país desde 1983.
Sobhuza ii, o pai do atual monarca, ainda hoje é venerado pela população de eSwatini. Morto em agosto de 1982, ele teve entre 70 e 125 mulheres, que lhe deram mais de 200 filhos. Ninguém sabe os números exatos. A poligamia masculina e a extrema submissão feminina são aspectos da cultura suázi que resistem à passagem do tempo e estão entre as causas da epidemia de Aids no reino.
Mais comedido que o pai, Mswati III desposou catorze mulheres. A oitava se matou em abril, supostamente por causa de uma depressão. Cada companheira do rei usufrui de um palácio e de inúmeras mordomias. Não à toa, sobram candidatas ao harém. Anualmente, a Vila Real de Ludzidzini abriga o Reed Dance, um festival em que milhares de virgens seminuas dançam para o monarca, orquestradas pela Grande Elefanta. O soberano pode escolher uma das participantes como cônjuge, o que nem sempre acontece. Sua mais recente parceira, a quem se uniu em 2017, é filha de um ministro e tem 19 anos.
“A poligamia acende a imaginação dos estrangeiros, que tomam o rei como um amante insaciável. Nada mais enganoso. Ele se casa com várias mulheres não por razões libidinosas, mas para ter diversas opções na hora de escolher o sucessor”, explicou Joy Dumsile Ndwandwe, pesquisadora que estuda a cultura suázi na Universidade da África do Sul.
Considerado pela revista Forbes um dos homens mais ricos do continente africano, Mswati III acumula uma fortuna de aproximadamente 200 milhões de dólares e vive como os extravagantes monarcas do Oriente Médio. Possui dois jatos, carros de luxo e palácios suntuosos. Em eSwatini, porém, não há poços de petróleo que sustentem a gastança. A cana-de-açúcar é a principal atividade econômica do reinado, que também conta com jazidas de diamantes, carvão, ferro e amianto. O país integra a União Aduaneira da África Austral, área de livre-comércio que inclui outras quatro nações: Botsuana, Lesoto, Namíbia e a poderosa África do Sul. As transações garantidas pelo acordo respondem por mais da metade do PIB de eSwatini, que gira em torno dos 4 bilhões de dólares. Se o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, levar adiante a ideia de rever a aliança, a contabilidade do reino poderá se desestruturar ainda mais, o que talvez produza o tsunami político tão esperado pela oposição.
“Vivemos numa ditadura. E uma ditadura corrupta”, resumiu o estudante de direito Wandile Dludlu em Manzini, a maior cidade de eSwatini. Ele coordena uma confederação relativamente discreta, que reúne organizações da sociedade civil em prol da democratização. “Deve haver entre 5 e 6 mil ricos no país”, continuou. “São pessoas que geralmente mantêm relações com a corte. O resto da população é pobre.”
Os privilégios da família real saltam aos olhos. Vão desde a inimputabilidade até o não pagamento de impostos. Empresas da realeza atuam tanto no setor público quanto no privado. É o caso da holding Tibiyo TakaNgwane, comandada pelo próprio Mswati III, presente em quase todas as áreas econômicas: da companhia estatal de açúcar à Parmalat Swaziland, de bancos a um dos dois jornais do país, o Swazi Observer. A modesta redação do diário ostenta um quadro que traz seus princípios editoriais: respeitar a monarquia e conceder-lhe o direito de vetar a divulgação de “assuntos sensíveis”.
Com cerca de 100 mil habitantes e uma caótica estação de vans e micro-ônibus que conectam todo o país, Manzini reúne os principais grupos pró-democracia. Nas ruas do município, não é difícil sentir o odor da swazi gold, a maconha local, famosa pela excelente qualidade. O governo proíbe o consumo da erva, mas o tolera – mais ou menos como faz com os opositores do regime.
Magro, alto e corcunda, Mphandlana Shongwe – um dos principais adversários de Mswati III – costuma caminhar com uma ginga bastante característica por Manzini, onde é bem popular. Muitos o chamam de Victim, pois ele frequentemente leva a culpa pelos atos contra a monarquia. Preso e condenado algumas vezes por subversão, acabou banido das salas de aula e impedido de trabalhar como professor. “A mudança de nome do país não passa de uma tremenda jogada de marketing. O rei finge renovar a nação enquanto os custos da brincadeira sobram para o povo. No fim das contas, as empresas ligadas à realeza é que se beneficiarão com as alterações de documentos, carimbos, uniformes e sabe-se lá mais o quê”, lamentou o ativista. Por motivos de segurança, Shongwe só aceitou conversar dentro de sua caminhonete, no estacionamento de uma agência dos correios.
O reinado tem atualmente quatro presos políticos. Um deles, condenado a 85 anos de reclusão, foi acusado de planejar um atentado a bomba contra Mswati III.
Perto do Palácio de Lozitha, no vale de Ezulwini, entre Manzini e Mbabane, crianças de roupas rasgadas brincavam com latões em estradas de terra. Seus pais sobrevivem da agricultura. A pobreza em eSwatini se concentra principalmente nas zonas rurais, onde mora mais de 75% da população. As choças tradicionais de barro e palha, como as que se encontram nas vilas turísticas, já não são utilizadas no campo, mas a falta de eletricidade ainda configura um problema e atinge quase 65% do povo (ou 900 mil pessoas).
Repleto de salas suntuosas, o palácio sediou um jantar de gala na noite do último 4 de junho. Mswati III, em trajes típicos, recebeu presentes de ministros, embaixadores, empresários, religiosos e populares pelo seu 50º aniversário. Ancestral, a prática de levar oferendas ao rei se repete anualmente, mas o Lozitha só viu uma noite como aquela em 2008, quando a nação comemorou o 40/40 – os 40 anos da majestade e da independência.
Caminhões e caminhonetes com bois, cabras, galinhas e porcos fizeram fila na porta do palácio. Funcionários da família real contaram 344 animais, 170 deles presenteados por uma igreja evangélica. Súditos com idades entre 6 e 75 anos trouxeram artesanatos, esculturas, panelas e até uma geladeira. O soberano ganhou da mãe o mimo mais opulento: uma sala de jantar toda de ouro. “Aos 50, você merece se sentar a uma mesa dessas”, anunciou a Grande Elefanta num raro e fugaz pronunciamento.
As doações em dinheiro – dezenas de cheques – também chamaram a atenção. No total, Mswati III embolsou 15 milhões de rands, o equivalente a 4,3 milhões de reais. Parte da fortuna veio de pessoas físicas, mas o grosso saiu da Tibiyo Taka-Ngwane, além de bancos, companhias telefônicas, igrejas, construtoras, supermercados e órgãos do Poder Judiciário.
O rei mostrou-se lisonjeado e esperançoso com o futuro de eSwatini. Estabeleceu o ano de 2022 como marco para o país se tornar uma nação de Primeiro Mundo. Só não explicou de que maneira concretizará a meta. Por fim, disse esperar que, nos próximos aniversários, as doações em dinheiro sejam ainda maiores e atinjam “uns 100 milhões de rands”.
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